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O Fenômeno da Desmaterialização dos Título de Crédito

Já assentada a essencialidade dos títulos de créditos para o desenvolvimento da economia moderna, cumpre-nos investigar a influência de sua dinâmica em face da marcha do avanço tecnológico. Vivemos hoje o que alguns autores chamam de “era da informação” ou “sociedade em rede”, caracterizada pela multiplicação das formas de interação, armazenamento e transmissão de informações.

No campo das relações comerciais, a utilização dos meios informáticos impôs velocidade e eficiência aos processos envolvidos nas relações mercantis, permitindo transações em tempo real, encurtando a distância entre contratantes e agilizando a concretização dos fins visados.

Se o direito não é uma ciência estática, devendo acompanhar as mudanças que defluem do progresso social, tampouco o é o direito comercial, notadamente o ramo mais dinâmico e flexível das ciências jurídicas, cuja função precípua é solucionar conflitos e regular as relações mercantis. Sabe-se que, via de regra, as mutações nas práticas negociais se antecedem à legislação, cabendo a este ramo do direito a tarefa (não fácil) descompatibilizar as novas práticas consuetudinárias à sua normatização no mundo jurídico.

O título de crédito foi concebido com o fim de impor facilidade, agilidade e segurança na mobilização e circulação de riquezas, portanto, não poderá ficar à deriva quanto às mudanças advindas dos processos de “virtualização”. Paulatinamente, as transações cambiais vêm substituindo a utilização de papeis (cártulas) pelo armazenamento e circulação de crédito na forma escritural, modalidade cujo título existe através de registros desmaterializados em telas virtuais.

Desta forma, tanto a constituição (através do registro virtual), quanto a operacionalidade de toda a cadeia cambiária, podem estar insertos dentro da memória do computador, de forma mais eficiente e talvez mais segura do que as operações de crédito realizadas através da inscrição em um papel.

Mediante o crescente processo de descartularização dos títulos de crédito, cabe aos juristas investigar a sua correspondência com a doutrina clássica acerca do instituto, investigação que erige capital indagação: O processo de virtualização conduz a alteração da substância do direito cambiário clássico, calcada na figura da cártula, exigindo ruptura integral de seus arcabouços estruturais, ou “apenas” torna necessária uma revitalização de seus princípios e regras norteadoras?

Não há como resolver tais questões sem cotejar a prática e a disciplina cambiária, seus institutos, princípios, funcionalidades e paradigmas, é o que se pretende neste livro.

Dos documentos eletrônicos e de sua validade jurídica

Pela definição de Carnelutti, embora o conceito de documento tenha aparentes contornos de subjetividade, pode-se inferir de sua concepção que documento significa a intervenção humana para retratar algo, através da utilização de algum instrumento capaz de registrá-lo.

Na menção doutrinária, portanto, a conceituação de documento não se restringe ao papel, mas sim a qualquer mecanismo capaz de armazenar informações (não somente as escritas), o que inclui, por dedução análoga, o meio eletrônico.

Na opinião de Pontes de Miranda, documento é “toda coisa que expressa, por meio de sinais, o pensamento”. Novamente se vê que a consignação em papel não é elemento de essencial, reafirma-se a abrangência mais genérica, como meio para se expressar algo.

Adriana Valeria Pugliesi Gardino cita a definição de Stefano Nespor:

O documento pressupõe a escrita. Considera-se escrita qualquer sinal (arábico, numérico, estenográfico, datilográfico, cifrado, etc.) expresso em qualquer linguagem, ou ainda por meios mecânicos, para que transmita uma mensagem que se conserve por um certo tempo; sendo por outro lado, irrelevante o suporte físico sobre o qual e impressa a mensagem (não é necessário escrever sobre um meio móvel e circulável como aqueles cartulares: e possível também existir um documento escrito sobre um muro). Portanto, também o documento informático e um documento, enquanto pressupõe um escrito inserto no fluxo eletrônico, gravado na memória de um disco rígido ou de um floppy, enquanto os bits são uma espécie de alfabeto.

O documento eletrônico, embora já conte com a sua utilização consagrada na prática social, ainda carece de conceituações precisas, a exemplo do que intentado na concepção de Regis Magalhães Queiroz,buscando a simplificação do conceito: “aquele que foi gerado ou arquivado por sistema computadorizado, em meio digital”.

Documento eletrônico, portanto, não se diferencia da forma documental clássica por seu conteúdo, este continua incólume e acessível na modalidade virtual, mas modifica-se em seu suporte. Ao invés de consignados em papel (ou outra forma clássica de armazenamento), seu teor é representado, em sua maioria, por códigos binários (o que poderá mudar segundo a continuidade da evolução tecnológica) e armazenados em um meio magnético, podendo ser acessado e transmitido com maior praticidade.

Vale ressaltar que o documento físico não é restrito ao uso de grafias, na medida em que pode ser impresso em papel uma fotografia, desenho, gráfico, etc. O mesmo vale para o documento digital, o que, aliás, se amplia, em se tratando de tal suporte, no qual as possibilidades de armazenamento são inúmeras, desde que respeitados os critérios de validade e admissibilidade que a legislação impõe.

Se ainda se vê, em parte (decrescente) da doutrina, reticência quanto à integração das práticas virtuais nas concepções jurídicas, nota-se, também, que os fundamentos aduzidos na resistência sofrem um processo progressivo de superação, tais como a questão de certificação da identidade das partes envolvidas, a prova da veracidade e integridade do conteúdo tratado, dentre outras.

Um dos precursores na prática da convivência jurídica com o suporte eletrônico, o direito Francês, em uma das reformas de seu código civil, estabeleceu, na dicção de seu artigo 1316-3 que:

L’écritsursupportélectronique a lamême force probante que l’écritsursupportpapier[O escrito em suporte eletrônico tem a mesma força probante que o escrito empapel].

Notório que o grau de confiabilidade legal, concedido naquele ordenamento jurídico, ao suporte eletrônico não poderia ser mais incisivo.

Nesse sentido, afirmou Valéria PugliesiGardino que, ao estabelecer igualdade de força probandi entre o documento eletrônico e documento materializado em papel, veio a acatar amoderna teoria dos documentos de Francesco Carnelutti. Esta assevera que o significado de documento está “no fato de ser algo que se permite conhecer ou representar um fato” (como, por exemplo, o metal, a pedra etc.).

No Brasil, a regulamentação jurídica dos documentos eletrônicos se deu pela Medida Provisória nº 2.200/2001, a qual concedeu aos documentos e declarações eletrônicas, desde que certificada de acordo com as disposições daquela norma, a equiparação a documentos físicos, conforme se constata no artigo 10 da lei:

 Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.

§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1º de janeiro de 1916 – Código Civil.

§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.

A norma jurídica também criou a “Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras” ICPBrasil, com o fim de certificar a autenticidade e validade aos documentos criados, o que será melhor explicado no tópico posterior.

Já a lei 11.419/2006, editada para regular a informatização do processo judicial, alterou o código de processo civil e convalidou juridicamente as práticas de atos processuais através de meios eletrônicos, tais como o envio de petições, intimações, publicação de atos judiciais dentre outros. O § 2 da norma conceitua o meio eletrônico da seguinte forma:

Art. 1oO uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei.

§ 1oAplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição.

§ 2oPara o disposto nesta Lei, considera-se:

I – Meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais;

Sinopticamente, as leis mencionadas aportaram como requisitos de validade dos meios eletrônicos ali tratados, as características de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICPBrasil).

Especificamente acerca da validade do documento eletrônico, dispõe o artigo 11 da norma que:

Art. 11. Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais.

Além disso, dispõe o parágrafo único do art. 154 do Código de Processo Civil, acrescido pela Lei 11.280/2006, que os tribunais podem disciplinar a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, desde que cumpridos os requisitos previstos.

Quanto à capacidade probatória processual dos documentos eletrônicos no Brasil, se dá primeiramente, de forma genérica, no artigo 332 do Código de Processo Civil, ao estabelecer que “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.

Mesmo que não abordado de forma expressa na referida norma processual, a sua aceitação tácita se dá ao se levar em conta o contexto da documentação eletrônico na interpretação do artigo, a moralidade, legalidade e legitimidade do meio têm sido albergado cada vez mais pela legislação e costumes mercantis. O dispositivo processual corrobora, ainda, o princípio da livre apreciação de provas pelo Juiz, insculpido no artigo antecedente (131 do CPC), o qual concede ao julgador a apreciação das provas segundo a sua aquilatação, porém, caso esteja devidamente circunscrito às provas produzidas nos autos e a legitimidade destas, aqui mencionadas.

Já o Código Civil de 2002 elenca o documento como um dos meios legítimos de se provar o fato jurídico, consoante estampa o inciso II do artigo 212, ao passo que o artigo 225 do mesmo diploma atribui a capacidade de produção plena probatória às “reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas”.

Assim, se a marchar tecnológica se dá a passos largos, interferindo profundamente nas relações cotidianas (inclusive as negociais), cabe à ciência jurídica buscar meios de adequação de suas normas, sob pena de não alcançar a regulação de todas as inteirações sociais.

Ainda na esteira da necessária normatização das práticas virtuais, foi publicada em abril de 2014 o chamado Marco Civil da Internet, que tramitou durante mais de dois anos na câmara dos deputados. Corporificada pela Lei n 12.965/14. A norma visa garantir direitos basilares no acesso à internet, como a neutralidade de rede, trazendo dispositivos sobre a guarda de informações, responsabilização pelos conteúdos, dentre outros.

Ao regular oficialmente o uso da internet, o chamado Marco Civil, via reflexa, aporta mais subsídios legislativos para que a práticas das transações virtuais adquiram contornos jurídicos mais precisos, eis que considerável parte das negociações acontece, em algum momento do “modus operandi”, no ambiente da internet.

Mais especificamente, no que toca aos negócios virtuais, pode-se mencionar o artigo 3, VIII e o artigo 4 da lei, que assim dispõem:

Art. 3oA disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

[…]

VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.

Art. 4oA disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:

[…]

IV – da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados.

Quanto à capacidade processual provas advindas do meio virtual, importa para o presente livro norma insculpida no artigo 22, abaixo transcrita:

Art. 22.A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.

Entende-se que, embora as mudanças advindas do avanço tecnológico se deem em um compasso de maior velocidade, o direito possui instrumentos para a normatização necessária, embora talvez o tempo demandado seja maior do que a necessidade de regulação.

No campo do direito empresarial, que, tem como modo elaborativo o acompanhamento das práticas comerciais consuetudinárias, o caminho da equiparação entre tecnologias e normas não é inviável.

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